Manoel de Barros – a caridade em um poeta apanhador de desperdícios

22-11-2016 10:51

A caridade é um dever que precisa se fazer presente na consciência como um imperativo categórico, de modo a conduzir as ações livres para o seu cumprimento. Para os espíritas, então, este é um dever reforçado sempre, inclusive sem o qual não há salvação, seja esta de que natureza for. Temos, é verdade, exemplos muito fortes de almas dedicadas a cuidar de quem mais sofre, dos infortunados da vida sem eira nem beira. Mas vamos alargar o conceito de caridade para não reduzirmos esses exemplos a personalidades como Madre Teresa de Calcutá e Irmã Dulce, pois nosso objetivo é citar e homenagear o poeta Manoel de Barros.

Não cumpre desvalorizar e muito menos comparar as ações que resultam em bem e expressam um cuidado fundamental com a vida, mas apenas trazer nuances mais sutis que costumam estar ausente da concepção de caridade. Vejamos um pouco da história de Manoel de Barros. O poeta nascido em Cuiabá viveu por quase 100 anos e nunca abriu uma creche para órfãos ou crianças carentes, asilo para os velhos abandonados, jamais formou caravana para dar sopa aos famintos das ruas, ou um mutirão para arrecadar remédios para doentes desassistidos. Além da simplicidade da vida e suas possibilidades da caridade obscura que quase ninguém vê, é no seu objeto de reconhecimento público, a poesia, que nos parece estar uma fonte de inspiração para a vida com suas implicações no conceito de caridade.

Nunca encontramos nas leituras de sua poesia a caridade enquanto preocupação, enquanto motivo poético. Porém, é na sua expressão poética que achamos um olhar cheio de cuidados e atribuições de importância, de valor das coisas simples e vivas. Esse olhar se faz com o distanciamento do mar de ilusões onde o homem mergulha de cabeça e se dilui. Por isso, Manoel de Barros diz a um repórter que o entrevistava em 1988 e lhe perguntara sobre o porquê de seu isolamento: “Não tenho boa convivência com a glória. Acho que ela me perturbaria. Preciso muito do escuro”. E é no escuro que ele consegue enxergar o que é essencial e invisível aos olhos, como diria Exupéry. Consciente da condição humana e distante da tola vaidade do mundo dos egos, inverte sabiamente os valores ao dizer que “A maior riqueza do homem é sua incompletude”.

Esse valor à incompletude é uma força para o poeta e a condição propícia para sentir o pulsar da natureza, como em seu encantador poema O Apanhador de Desperdícios:

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade das tartarugas

mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

E mais uma vez ele concebe uma sábia inversão de valores ao afirmar por meio de poesia: “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Andamos esquecidos das insignificâncias e centrados em valores de mercado que recrudescem o egoísmo. Felizmente, encontramos sempre pensamentos divergentes, contrários ao perigoso ideal expresso em poucas palavras por Quincas Borba, um personagem de Machado de Assis: “Ao vencedor, as batatas.” E essas almas dedicadas ao trabalho de descobrir e partilhar outros valores que conduzem ao jeito simples de ser, à comoção experimentada no devir da natureza e sua consequente integração totalizadora, são almas caridosas. E aqui expandimos o conceito de caridade, no deslimite da palavra, capaz de alcançar um fazedor de amanhecer como Manoel de Barros. Olhar de forma poética para as coisas ínfimas, consideradas desimportantes, é um gesto de amor, é um gesto inspirador de caridade, pois o valor das coisas passa a ter uma outra medida: “A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor.”


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